Quando começa é quando termina

Quando começa é quando termina

– O que há de bom a respeito disso é que não dói nada – disse ele – mas é por isso mesmo que se sabe quando começa.

Eu sabia o que era dor.  Sabia até demais. Stella havia sido minha primeira. Eu a conheci quando tinha meus dozes anos, garoto apenas, e já apaixonado. Ela, bem mais velha, nem percebia a minha presença, e eu, adorava aquilo. Aumentava seu charme. Completei dezoitos anos, e juntei coragem para me apresentar a ela em um casamento de um conhecido nosso.

– Oi Stella, meu nome é Sebastian. Acho que você já me viu por aí, se não… Bom… Eu já, e tenho que confessar: que visão maravilhosa!

Aquele vestido dourado que ela usava, com as costas nuas e lantejoulas nas mangas que faziam um barulhinho engraçado, era meu paraíso particular. Depois contei a ela todas as fantasias que tive.

– Oi Sebastian.

– Você vem sempre por aqui?

– Não. Primeira vez. E você, sempre usa essa cantada barata e manjada em mulheres que nunca ficarão com você? – disse isso e saiu.

– Nunca diga nunca. – Cochichei para mim.

Dali, fomos para um quarto no sétimo andar do hotel que estávamos. Luxuoso. Eu pedi champanhe para comemorar meu ganho na loteria, ela tirava os sapatos e explorava o local.

A noite fora a melhor noite de minha vida, meu pai havia me ensinado bem: “mulheres experiente sempre te proporcionarão os melhores prazeres”. Espreguicei, ainda sentindo a satisfação de uma noite bem dormida; olhei para o lado e lá estava ela, com a maquiagem borrada e o esboço de um sorriso no rosto. Quando ela acordou conversamos um pouco e decidi perguntar sua idade.

– Quarenta e quatro. – Ela falou me observando – Espantado?

– Não.

Minha mãe achava loucura, o que eu estava fazendo. E para não ouvir mais suas lamentações resolvi alugar um loft, no centro de Manhattan.  Mantinha-me com o dinheiro que meu pai depositava toda semana. Minha repentina independência incentivou Stella a me permitir em sua vida.

Víamo-nos todas as noites. Às vezes, nos encontrávamos para almoçar ou tomar um sorvete, aos domingos. Eu estava feliz, pela primeira vez me senti realizado, tinha tudo o que queria.

Uma segunda-feira qualquer, cheguei em casa e encontrei Stella vestida em uma camisola azul clara, transparente. Agora, minha favorita. Perguntei se era alguma data especial que eu havia esquecido. Ela respondeu que não. Segurou minhas duas mãos nas suas e me puxou para o sofá. Estava gostando daquilo.

Fizemos amor ali mesmo.

– Recebi uma proposta de emprego. – Ela falou olhando para a parede, de costas para mim, enquanto ainda estávamos deitados.

– Sério? Que ótima notícia!

– Na Indonésia. Os diretores me ligaram hoje, disseram que o documentário foi aprovado pela produtora. Partiremos na quarta-feira.

Levei Stella ao aeroporto e ela se despediu de mim com um beijo seco. Soltou minha mão e seguiu entusiasmada com sua equipe. Não olhou para trás uma vez sequer. Eu subi até o ultimo andar do aeroporto e esperei até que seu avião decolasse, com um nó na garganta.

Não sou de me apegar a ninguém, e o quanto mais rápido parasse de sentir aquela coisa estranha, que apertava meu peito, melhor. Liguei para minha mãe e falei que estava voltando para casa, nunca a ouvi tão alegre; gritou de felicidade e começou a planejar minha festa de boas-vindas. Eu apenas segurava o telefone no ouvido, sem fazer muitos comentários. Marcamos de nos encontrar na coffee shop da esquina do meu edifício e dali, partiríamos para as compras.

Enquanto minha mãe comprava, resolvi dar umas voltas e parei no Central Park. Gostava daquele lugar. Depois de uma breve caminhada decidi me sentar. Avistava apenas um casal, ao longe. As pedras que estavam próximas aos meus pés me serviram de passatempo. Jogava-as no lago e contava os segundos até todas as ondas sumirem. Eram feias aquelas pedrinhas, umas mais pontiagudas que outras, mas tive vontade de guardar algumas em meu bolso. Cansado, segui meu ultimo instinto. Meu único, na verdade. Sai daquele lugar e me dirigi a um armarinho.

– 20 cm de couro, por favor. Daquele mais duro.

Cheguei em casa e serrei o cabo da vassoura em um terço. Com um martelo finquei pregos até a metade do cabo e amarrei, com força, as tiras de couro que havia cortado. Peguei as pedrinhas que estavam em meu bolso – as mais pontudas – e fui colando, uma a uma, em cada tira. Sacudi meu instrumento para ver se nada cairia. Não.

Eram 3h da manha quando comecei. A primeira chicotada é um pouco assustadora, mas lança uma porção de adrenalina melhor que qualquer droga por aí. Depois, as doses vão diminuindo, e é preciso aumentar a força. Continuei, lançando o chicote em minhas costas e minhas pernas, mas meus braços se cansaram e eu resolvi parar um pouco. Acordei quando o sol já mostrava seus primeiros sinais de existência e me senti molhado. Era meu sangue. Estranhei ser possível o corpo humano abrigar tamanha quantidade de líquido e resolvi desafiar a natureza; saber até onde era possível chegar.

– É, doutor. O que há de bom a respeito disso? Não dói nada. Nadinha. É até bom. Às 3h da manhã, quando tudo começa, é ótimo. Aconselho, inclusive. Mas ao raiar do dia, quando não se sente mais o corpo, e todo seu sangue está espalhado pelo chão… Bem, é assim que se sabe quando termina.